🧰 tiago gasperin
Experimentações com cercas
Esse texto apresenta o projeto Experimentações com cercas, seus conceitos, ações e desdobramentos. Ele aconteceu durante o período de pouco mais de um mês, na cidade de Porto Alegre e consistiu de dois ensaios textuais e da criação e experimentação de duas ações de intervenção urbana.
Começo
O trabalho tem início com uma espécie de realização. Em uma caminhada tranquila até o mercado, em um domingo de manhã, percebo estalos que me acompanham ao longo do percurso. Levo um tempo, mas entendo que eles são gerados pelas cercas elétricas da rua. Nesse instante, algo que sempre esteve presente é desvelado para mim: estava cercado por todos os lados!
Nos dias que seguem, começo a observar cada vez mais as cercas, grades e outros meios de proteção que compõem a paisagem urbana. Artefatos quase bélicos, que ditam os limites de onde podemos, ou não, ir. Eles se colocam em posição de guarda, de maneira quase natural, como se sempre tivesse sido assim.
Jacopo Crivelli, em seu livro Novas Derivas, abre o capítulo Construindo uma nova sociedade perguntando:
“A quem pertence o corpo de cada um? Quem define, organiza e regulamenta seus movimentos e seus itinerários, prescreve seus exercícios e cuida, assim, de sua saúde? Até que ponto podemos acreditar, ingênua ou corretamente, que a esfera do corpo seja exclusivamente pessoal e não o do campo público de um conflito entre o poder e o indivíduo?”
Encontro nessas questões um diálogo direto com o incômodo gerado pela nova percepção dos meus arredores.
Vejo nas grades e cercas símbolos de um controle exercido por uma sociedade que privilegia a propriedade privada e a segurança a todo custo. Materializações de um ambiente urbano que nos faz seguir caminhos pré-definidos e que tenta ao máximo suprimir o movimento livre e descompassado em relação ao ritmo de lucro e produtividade.
Então, penso que gostaria de entender como outras pessoas percebem esses elementos.
Criação
Com uma ideia vaga de como gostaria de investigar o tema, passo a fazer caminhadas dedicadas à observação desses objetos. Vontades vêm a mente: e se eu pintar algumas cercas com cores de parquinho? E se eu cercar um lugar público? E se eu pendurar coisas em cercas?…
Nesse momento, esses objetos de proteção passam a desempenhar o seu papel de maneira exemplar. Os questionamentos sobre as consequências que isso poderia gerar são constantes. Qual a reação que alguém teria ao me ver interagindo com a sua barreira de proteção? Poderiam pensar que eu estaria sabotando ela de alguma maneira? Marcando aquele local?
Me senti oprimido pelo meu objeto de pesquisa e escrevi um ensaio sobre o momento em que percebi a existência massiva dele.
A partir da escrita, percebo a vontade de por à prova. Mas antes, quis criar minha própria proteção. Enviei, através de uma newsletter que mantenho, uma cerca digital, como maneira de definir meus limites. Então, me senti mais protegido para testar.
Execução
Dois aspectos das cercas passaram a me gerar curiosidade:
- a capacidade de bloquear caminhos;
- a capacidade de perfurar.
Disso, duas possibilidades de ação surgiram e me mostraram caminhos ainda mais interessantes a serem explorados.
É válido afirmar, isso foi um grande experimento. Os caminhos que se abriram quando as ações passaram do mundo das ideias para o mundo real foram múltiplos e, muitas vezes, romperam com as expectativas sobre como a execução das ações se daria. Essas novas possibilidades muitas vezes vieram de forma dolorosa, com a necessidade de admitir uma falha no meu planejamento. Contudo, aos poucos, entendi como poderia integrá-las ao processo de criação. Encontro certa semelhança desse movimento com o descrito nas palavras de Robert Watts:
“Há alguns anos atrás eu deixava de lado qualquer coisa que não parecesse se adequar ao que eu estivesse fazendo naquele momento. Todas as outras coisas eram, de alguma forma, distrações. Hoje em dia, quando aparece alguma distração eu separo um tempinho para pensar sobre ela, ou escrever sobre ela, ou fotografá-la, gravá-la, filmá-la, ou modelá-la, ou comê-la ou alguma outra coisa do estilo. Aliás, me parece que cada vez mais, as distrações são mais interessantes do que qualquer outra coisa.”
Estou convencido de que as distrações desempenharam um papel essencial nas ações, transformando-as e trazendo significados completamente inesperados.
Série de ações I – Rebatimentos com giz
Essa série de ações consistiu em desenhar rebatimentos de cercas em calçadas, utilizando giz escolar. A ação seguiu dois métodos:
- O rebatimento sendo desenhado imediatamente à frente da cerca em questão, replicando os detalhes da mesma;
- O rebatimento sendo desenhado utilizando a sombra projetada pela cerca como guia.
O primeiro método, executado quatro vezes, pareceu sempre acrescentar uma dimensionalidade maior às cercas. Criando uma projeção delas para um espaço horizontal, que não ocupariam normalmente. Para além, uma adequação daqueles objetos tão sólidos e firmes a um novo grid. Os limites das pedras das calçadas acabavam por guiar o traçado do giz, conferindo novas dimensões forçadas às cercas sendo representadas.
O fato do giz escolar ser um material facilmente removível, acrescentou uma nova camada de percepção ao experimento. Para cada pessoa que caminha sobre o rebatimento, ele sofre um pequeno apagamento. Em se tratando do desenho de uma cerca, é interessante pensar que quanto mais pessoas se deslocam sobre aquela barreira, antes ela se dissolve. Isso impõe um questionamento conceitual interessante à proposição.
No segundo método de desenho, a partir da sombra projetada pela cerca, a grande descoberta foi a velocidade com que as sombras se movem. Em questão de alguns instantes de execução, já era possível perceber as sombras se desencaixando dos traços de giz e a ação se tornou uma espécie de corrida para o registro daquela configuração única de sombras. A experiência, de início, pareceu distante do tema inicial do projeto, dado o fato de que a ação era muito mais sobre as sombras do que sobre objeto que as projetava. Porém, em análise posterior, penso que a sombra em movimento nos trás a questão, já colocada, de submeter algo tão imóvel quanto uma cerca a uma nova condição de existência móvel e impermanente.
Aqui, coloco essa série de ações em comparação com a obra Cuando la fe mueve montañas, de Francis Alÿs. Nela, o artista e mais 500 voluntários movem manualmente uma duna que ameaçava engolir o aglomerado urbano de Ventanilla. Na visão de Jacopo Crivelli:
“A duna foi afastada apenas poucos centímetros, mas o objetivo de Alÿs, perfeitamente realizado, não era tanto o deslocamento físico da montanha, mas sim conseguir transmitir a consciência de que esse ato é possível e assim estimular uma nova relação com o lugar, com o país e com o mundo.”
Ao criar rebatimentos de cercas com giz, não pretendo afetar a materialidade dos objetos propriamente ditos. De forma análoga a Francis Alÿs, quero criar novas percepções e relações das pessoas com os lugares, mostrando a possibilidade de agência das mesmas nos ambientes que, muitas vezes, traçam caminhos padronizados para uma série de cotidianos pré-definidos.
Série de ações II – Teste de perfuração com balões
Essa ação se constituiu em estourar balões nas pontas afiadas de cercas. Para a execução dela, saí de casa com balões e um banquinho para alcançar as cercas altas. O método de execução foi o seguinte:
- Encontrar uma cerca com pontas apropriadas
- Encher um balão
- Posicionar e subir no banquinho, quando necessário
- Pressionar o balão contra a cerca
Essa ação teve duas baterias de execução em dias diferentes. Num primeiro momento, acontecendo como um teste, onde saí sozinho e estourei quatro balões. No segundo momento, cerca de vinte balões foram estourados e a ação foi registrada em vídeo por uma pessoa que me acompanhava.
Realizei uma série de testes e pequenas variações na execução. Abaixo, apresento alguns dos registros em uma playlist e descrevo algumas situações proporcionadas pela ação.
- Pedi para um grupo de mulheres sentadas na parte de dentro da cerca de um prédio, se eu poderia estourar um balão na cerca. Depois de algumas Pedi para um grupo de mulheres sentadas na parte de dentro da cerca de um prédio, se eu poderia estourar um balão na cerca. Depois de algumas breves explicações, onde disse que estava testando a capacidade da cerca estourar balões, me permitiram. Convidei elas para assistir, nesse momento uma delas falou “Não tem nada para assistir!”. Enquanto estava preparando meu banquinho e o balão para a ação, essa mesma pessoa foi a única a se reposicionar para enxergar melhor a ação. Após, ela constatou com firmeza: “Estourou!”.
- Convidei algumas pessoas que passavam pela rua, sozinhas ou em grupo, para assistir a uma execução da ação. Todos que convidei toparam assistir. Recebi risadas e olhares confusos. Uma das reações que mais me surpreendeu foi a de uma pessoa que começou a aplaudir e me agradeceu pela oportunidade de presenciar a ação.
- Na primeira vez que realizei a ação escrevi “em uma fração de segundo o balão estourou, emitindo um som alto que assustou quem passava ao redor”.
- Ao estourar um balão em uma rua, aparentemente, deserta, uma enorme revoada de pombos saiu em disparada de uma árvore próxima.
- Quando havia recém estourado um balão, próximo a uma praça, uma moça me abordou pedindo que eu fizesse a ação em outro lugar, pois havia um bebê dormindo dentro do carro dela.
A partir desses relatos, penso que o ponto de contato da ação proposta com o mundo é uma das coisas mais relevantes enquanto objeto de reflexão. Paul Ardenne, afirma que:
“Embora pouco a pouco se generalize, o reposicionamento do artista no espaço público, no entanto, nunca é óbvio. Autoritário (é o artista quem decide o local onde instala sua obra), ele é imediatamente confrontado com outra autoridade, a do poder público instituído (o poder político que detém o poder cultural e o único que pode decidir sobre os locais onde expor obras de arte). Uma tensão inevitável e essa constatação derivam desse encontro: as relações, delicadas em si mesmas e nada naturais, entre o artista e o poder político, têm todas as chances de se tornarem impossíveis se ficar claro que o artista assume o direito de dispor do espaço público, fazer o que quiser e refutar sua organização.”
Entendo, nessa proposição, as próprias cercas como representações do poder público onde a utilização das mesmas para estourar balões cria uma tensão na organização social. Em diversos momentos, foi necessário considerar o ambiente a minha volta e reconhecer certa agressividade atrelada à ação. A checagem por cachorros ou crianças, que poderiam ser sensíveis ao estouro, virou padrão antes de cada execução.
É válido notar que a maioria das pessoas que presenciou a ação pareceu não saber muito bem como reagir. Penso que isso promove um ponto de inflexão na maneira com que as coisas são. Ainda pensando na afirmação de Ardenne, me pergunto o quanto e como eu poderia aumentar a tensão causada pela ação, de modo que as relações citadas pelo autor se tornem realmente impossíveis.
De maneira a dialogar com o ponto abordado, cito a série de obras Corpo Ruído, de Paula Garcia. Nelas, a artista, vestindo uma roupa imantada, deposita pedaços de ferro em seu corpo, praticamente sumindo por detrás dos objetos. Em suas palavras, “Corpo Ruído é um procedimento artístico que opera sentidos por meio da geração de dispositivos de desestabilização da experiência do corpo”.
Ao colocar a obra lado a lado com o Teste de perfuração com balões, é possível traçar alguns paralelos. Segundo Claudio Pereira Bueno, Paula Garcia “ativa um campo invisível em torno dela e incita a pensar sobre aquilo que nos afeta diariamente, reduzindo nossos movimentos e pesando sobre nosso corpo, mas não vemos”. Na ação executada por mim busco afirmar coisas parecidas, mas em processo inverso. Ao contrário de Paula, que traz elementos físicos que impedem seu movimento para perto do seu corpo, eu faço o processo de ir até o elemento físico que bloqueia os corpos para evidenciá-lo. Vejo nas duas obras uma relação ao explorar o poder, exercido pela sociedade, sobre onde o corpo deve ou não ir.
É interessante, também, perceber o efeito do registro sobre a ação, roubando dela certa espontaneidade. Por diversas vezes me percebi posando para a câmera e pensando no melhor ângulo para estourar o balão. Um ponto que me cativou foi que os registros ficam a mercê do dispositivo responsável por fazê-los, nesse caso um celular que, em dado momento, deixou de capturar os vídeos da maneira esperada. Assim, os últimos registros da ação apresentam a imagem congelada de uma cerca e uma série de sons que têm seu ápice em um forte estouro. Isso promove um novo significado à ação, tornando-a menos óbvia e colocando uma camada de suposição sobre o que acontecera ali.
Abaixo, um dos vídeos que foi corrompido:
Por fim, deixo um relato em texto de um encontro que aconteceu logo após eu perceber o bug na câmera e resolver voltar para casa:
De repente, Gilmar, um catador de lixo, me abordou perguntando: “Qual era a moral disso aí que tu tava fazendo?”. Expliquei que tinha me dado vontade de fazer coisas sobre cercas, contei um pouco sobre como essa vontade iniciou. Daí em diante, seguimos em uma conversa onde ele me explicou que o motivo das cercas serem tão agressivas é a pedra, contando ser viciado há mais de trinta anos e que alguém atrás de comprar pedra pula qualquer cerca que não seja elétrica e rouba qualquer coisa.
Mencionou, inclusive, que nos Estados Unidos isso não é necessário. Colocando que lá eles têm cercas bem baixinhas e que muitas vezes nem cercas têm, conectando diversos quintais.
Por diversas vezes, ele elogiou a ação que assistiu, mas reforçou que achava que eu deveria fazer alguma ação que diminuísse o problema causado pela pedra. Questionei se ele tinha alguma ideia de ações que poderiam ser feitas para isso. Então, me deu o número de telefone de um de seus irmãos e disse para ligar para ele amanhã, enquanto isso, Gilmar iria pensar em uma ideia para me falar.
Ele trouxe diversas problemáticas sobre a relação do estado com a pedra. Falou que a polícia que fica em frente a comunidade não é eficaz de verdade, que eles deveriam entrar e acabar com todos os traficantes lá de dentro. Trouxe muito a questão de que o estado não acaba com a pedra pois lucra muito com isso, que não é interessante pra quem tem o poder que a pedra pare de existir.
Senti que ele se colocava em uma posição um pouco diferente dos outros usuários de pedra. Em dado momento, afirmou que não achava certo que as pessoas dessem comida para os usuários, que isso deixaria eles acostumados a ganhar tudo e quando tivessem dinheiro comprariam pedra sem pensar duas vezes. Contudo, quando falava de sua própria experiência, reclamava de ser tratado mal e raramente ganhar comida.
A certa altura, quando eu explicava a minha pesquisa e falava dos estalos das cercas elétricas, mencionei que as cercas eram muito agressivas e machucavam. Ele concordou e, de maneira inusitada, afirmou que sim, o estalo machuca muito quem vai dormir em frente a cerca. Por outro lado, disse que o comportamento dos catadores e pessoas em situação de rua também machuca muito o dos moradores das casas.
Gilmar tem uma barbearia com seu irmão. Ele falou que não vai mais para lá porque seria chato e pegaria mal ficar com o carrinho de catar papelão lá na frente.
Tentei ao máximo transcrever os pontos que foram conversados com Gilmar, mas sei que posso ter sido tendencioso em minhas lembranças. Espero ter feito jus ao que ele me contou de maneira tão espontânea e não ter aplicado juízos de valor pessoais. Prezo tanto por essa interação justamente pelo fato dela ter vindo da boca de alguém que é alvo direto das cercas e outros meios de proteção urbanos. De alguém que tem passado seus dias cercado do lado de fora.
Referências
HENDRICKS, Jon. O que é Fluxus? O que não é! O por quê. Brasília: Centro cultural Banco do Brasil, 2002.
BUENO, Cláudio Pereira. Campos de invisibilidade. 2015. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
FERREIRA, Paula Garcia Gonçalves. Corpo Ruído como procedimento na arte. 2009.
VISCONTI, Jacopo Crivelli. Novas derivas. 2014. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
ARDENNE, Paul. Un arte contextual: creación artística en medio urbano, en situación, de intervención, de participación. Murcia Cultural, 2006.
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