Nos últimos dias, todas as palavras que eu escrevo me agridem. Como se fossem pequenos animais, que têm sua paz perturbada quando eu os coloco na página, elas revidam, me dando pequenas mordiscadas. Não é uma dor intolerável, é mais como uma irritação causada pela grande quantidade de mordidinhas que eu recebo. E quanto mais eu escrevo, mais palavras aparecem e mais eu sou mordido.
Escrever uma palavra tem sido um grande compromisso, tanto conceitual como de estilo de escrita. “Eu realmente sei do que eu tô falando?” ou “Essa palavra tá repetitiva/redundante/entruncando o texto.”, são pensamentos recorrentes depois de depositar uma ou duas frases que tentam externar algum pensamento.
Os dois parágrafos acima já firmaram alguns compromissos que eu começo a repensar. Será que mordiscar é a melhor definição para o que eu sinto? Talvez eu poderia dizer que as palavras voltam pra me questionar, buscando satisfação por eu ter usado elas daquele jeito. São conceitos cheios de si (se é que poderiam ser cheios de outra coisa) que policiam a maneira com que são usados. De fato, não. De fato, quem policia o conceito, é a ideia que eu tenho da ideia que outras pessoas podem ter sobre ele.
Nesses dias de bloqueio de escrita e constante impulso de procrastinação, o YouTube me recomendou um vídeo do Van Neistat sobre… bloqueio de escrita. Parafraseio um pensamento que o criador compartilha no vídeo: procrastinar resolvendo pequenas tarefas e criando pequenas invenções é uma maneira de deixar a mente fluir e ir para outros lugares, mas escrever é um momento em que a mente, inevitavelmente, se confronta com ela mesma. Talvez, o pensamento original não seja exatamente esse, talvez eu tenha criado coisas em cima ou removido algo (e todos esses compromissos com as palavras me fazem querer criar adendos e mea culpas sem fim).
Tenho sentido na pele (através das mordidas) o que Van aponta. Mas isso só quando escrevo algo, que, como esse texto, será lido por outros. Quando, logo que acordo, faço meu ritual de preencher quatro páginas A5 com qualquer pensamento que me venha à mente1, as palavras grudam no papel e não tentam revidar. Descansam. Não foi sempre assim, no entanto. Logo que comecei com essa prática, elas tentavam questionar o seu uso e se grudavam em algum lugar da mente, bloqueando uma torrente de pensamentos que eu cuidadosamente tentava liberar. Quando resolvi que nunca mais leria o que escrevo naquelas páginas matinais… as palavras fluíram! Malditas, sem-vergonha. Quando escrevo para os outros o fluxo de pensamentos até pode acontecer, mas precisa ser editado depois. Mas até na edição sou atacado!
Escrever esse texto é uma tentativa de propôr um tratado de paz às palavras ou, quem sabe, calejar um pouco as mãos para aguentar mais mordiscadas. Com certeza, nunca vou conseguir usar todas as palavras tranquilamente: são muitas e, ali no meio, têm as mais bélicas, que são revoltosas e de difícil conciliação e as mais selvagens, que mordem muito mais forte do que as outras.
Escrever e publicar esse texto no meu empoeirado blog, onde eu nem sei se ele será lido, é uma pequena vitória, num momento em que as palavras parecem estar começando a mordiscar antes mesmo de eu tirar elas da cabeça.
Para mim, confronto e escrita têm sido palavras que andam juntas. E, apesar dessa associação não me agradar, eu não sou o tipo de pessoa que entra em confrontos e compra brigas, mesmo as que eu sei que deveria comprar.
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Prática conhecida internet a fora como morning pages. Popularizada e, acredito que, criada por Julia Cameron no livro O Caminho do Artista. Nunca li o livro mas entrei em contato com a prática em uma oficina que fiz. ↩︎